quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Mirando-nos.

Em quantas línguas ler-te, em quantas línguas falar-te, ou em quantas línguas beijar-te. Em todo o seu absurdo de um momento, sua guirlanda de todo o tempo, olhar de ciranda, todo esse seu absurdo olhar, que é em si um espaço ou um molde para uma estatueta de Rodin. Todo o seu rosto é o além da máscara e o além do sorriso. Olho-te e moldo-te minha estatueta, minha peça perfeita para explicar o tempo, para explicar os sonhos. Para explicar-te em quantas línguas forem, para além das minhas figuras de linguagem e minha semântica que toca-te apenas os calcanhares de bailarina. Os calcanhares feitos de madeira forte trabalhada infinitamente pelo suor da existência. E olhamo-nos em todas as línguas ou em outra língua, mais sonora, mais poética, mais sentido e menos arte, mais corpo e língua de retalhos coloridos, beijo-te, olho-te, confundo-me. Confuso olho-te apenas numa metade da face e desdobro seu rosto em cubismo, recrio máscaras do seu rosto, de todos os mínimos ângulos do seu rosto, recrio-te poliglota e mágica, recebo-te mágica no molde dos meus rostos todos, intensos, mirando-te de poucos centímetros de distância, apenas vislumbrando uma possível forma de existência ao seu lado, em poucos instantes de uma existência maior, poucos milésimos dessa existência maior, miro-te a textura da pele, as cores que absorve e devolve, os milhares de tons que compõem suas bochechas, contorno a linha da sua boca como um desenho, e devolve-me um estático momento de si mesma, na sua boca, o amor que ama o amor, toda ela, toda essa metade da sua boca é um desenfreado rastro ou mesmo um erro da matéria que coincidiu em ser secretamente a perfeição do traço, não por estética, mas por ser o acaso de ter sido desenhada essa mesma linha que forma a sua boca. Linda por guardar tão ínfimo segredo da natureza em um traço de sua boca. Detenho-me o tempo de uma eternidade olhando teu segredo e meu olhar é tragado como água para um rodamoinho estratégico de seu rosto, que arrasta todo para seu olhar e torna insignificante lá fora um homem que saindo do trabalho, corre pela chuva para chegar mais rápido em casa ou as marchas mudas por uma juventude comprometida ou ainda todas as empresas que se ocupam na criação dos desejos humanos. Somos atravessados por fios do seu cabelo que não se contentam com a imobilidade do todo e tornam-se cachos rebeldes e carentes, solitários em confronto com a matéria do seu rosto, resistindo aos inúmeros atentados de prendê-los por trás das orelhas. Não, o desejo do seu cabelo é de vento, o desejo do seu cabelo é levá-la pela vida, solta como um mundo, feita de entrelinhas, sua verdade e sua objeção, sua liberdade e sua dependência, sua metade mulher e outra minha.

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