sábado, 30 de outubro de 2010

O sol nasce poente
na ponte do pensamento

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Poética

- cadê o barulho da máquina de escrever? cadê o pó de grafite que mancha o canto da folha? -

Tentei viver, mas naquele mesmo segundo estava preso no trânsito e, como desespero,  fico nessa afasia que é insanidade. Até que uma borboleta amarelopoente pousou no para-brisas. A gente se lembra tão fácil...

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Vê-se como a vida sublima a poesia - não seria o inverso? -. As épocas de florescimento não ocorrem senão fora do tempo... Nos interlúdios, algo de quê as transformam em cotidiano.
As tonalidades do tempo são palavras disfarçadas - E me torno metafísico, sem perceber - máscaras de memória.
condição de música
cadência alienada de um sufoco

o cheiro do lótus me invade com sua cor de dimensão outra
como uma vela acesa guardada por outras camadas de vela
e do fogo só transcende a memória, já fantasia.

- a primavera trouxe a lua
ou a lua trouxe a primavera ? -

a chuva invade o quarto com tonalidades de umidade
como é bom respirar !

quarta-feira, 26 de maio de 2010

O começo é sempre o difícil. Pensar sobre o quê e o como, talvez criar algumas passagens interessantes, outras insignificantes, limpar tudo que é excesso - a mente fala demais. Criar um poema ou uma tese e antítese de elocubrações sobre a beleza desabrochada da primavera ou sobre o por quê da arte na vida do ser humano. Fascinante como o descontraído e imperceptivelmente trabalhoso bater de asas de um inseto de luz, e especificamente aquele inseto de luz, que é uma espécie da companhia necessária nos momentos de solidão. « He is even teaching me spanish, o tal vez el francés ». Aquele inseto de luz sou eu, rondando os feixes como um peixe nada num oceano, rondando a luz como que invejando um xamã que atravessa a imensidão das coisas. Num suave bater de asas poliglótico, infinitamente asas e só, num todo muito complexo que é mar, ar, luz, infinito, absoluto. E eu apenas asas e só.
Até que um sino me desperta. Vibrando todas as células das minhas emoções, porque eu só posso falar de mim. E não sei de mais ninguém. Eu sou um personagem amarrado no voar dos insetos de luz. Com a boca amarrada no desvelamento da vida, além dos barulhos desse mundo, além do que me rodeia. Com ossos de uma solidão incrível. Posso até alcançar o teto, mas cessa.
Fui sentindo quantos músculos funcionam para manter a minha cabeça ereta. E deixei-a cair.

segunda-feira, 26 de abril de 2010

mar e sonhos

ainda que mal
poetar a dor da madrugada
em versos tênues e sombreados
pelas palavras da minha própria dor

sinto que choro que sonho
que sonho que choro que
a lágrima do rosto que desce que
rola que sonha que rola
tanto rola que tá-que-não-tá
nas árvores e andorinhas da praia sem fim

antiga floresta de espaços vazios
hoje lenha, ainda fogueira, sendo cinzas
e cinzas só, que não são tão cinzas porque
ainda há de ser cor outra que não tão na
memória alarde, arde em brisa morna
do sol gelado sobre as marolas do mar
inusitado, visito suas sombras mais densas mais
fundas como um espírito único, dos quatro ventos
que te afagam as cristas como cabelos profundos
cabelos que envolvem toda a terra fora cinza
fora cores que tão vida como a vida
vivida e desvivida eternamente na imensidão
das infinitudes paralelas renascenças e retornos
repletos de outros dos outros que se perdem
nos buracos negros antigos do mar

o mar perde-se em sonhos que sonham
lágrimas e só

domingo, 25 de abril de 2010

Guardarei a vontade para depois.

sexta-feira, 23 de abril de 2010

Poema-minuto
uma pírula de sorriso
na inércia do dia-a-dia.

Morelli disse, como um mote, no jogar da Rayuela, que não existe causa plausível ou mesmo aceitável para o não fazer estático da madrugada na cidade, na inércia das marolas no mar vazio e na concepção astronômica de zoroastros e zodíacos e zaratustras inventados sempre-sempre novamente. - Quem é Morelli afinal? - inventor da interrogação de Cortázar e do estupendo diálogo entre o asfalto e as solas descalças dos pés no pular da amarelinha. Seria como refazer-me uma vez após outras na dança despretenciosa das luas a cada semana, nas noites frias em pleno verão e nas cachoeiras incoerentes da sansibilidade.

O processo não é nada
                                   O estímulo é tudo.
Birra modernista
                                   Resignificação do momento
Desconstrução
                                   Ordenada.


- Quando seguro sua cabeça assim entre o berço das minhas mãos...
Ato e significado.

fome.

sábado, 3 de abril de 2010

Meu ser e o seu

Queria estar por dentro do riso que a faz riscar as paredes e acender fogueiras com pedras ancestrais, dentro do sorriso macio que me desce a garganta como lubrifico, que massageia o resto todo do meu corpo ancestral, da idade da pedra, do fogo, do ar... Queria ser muitas personalidades em uma pra fazê-la sentir todos os sentidos de uma vez e rolar sobre o pavio de pólvora do cotidiano para senti-la esquecer que o mundo gira a mais de mil quilômetros por hora e que dependemos de poucos graus de inclinação no eixo da terra para existirmos, que além do nosso biológico existe um corpo que cicatriza feridas invisíveis e uma cultura de faca cega e fé amolada. Somos nós e a nossa conjuntura. O humano além mito. Queria ser a animização do seu dia a dia, como um totem politeísta da sua consagrada consciência coletiva, concreta e existencial, tanto sartre pra sua rotina, na fenomenologia da sua retina, um quadro feito de pincel e sopro. Ser os filmes argentinos que a fazem chorar. Quero arrancar todos as tomadas da minha casa e fazê-las de cartão de visitas coloridos e inesquecíveis, de experiência sublime. Quero balançar com você nos ônibus como neruda no seu mar de cimento e gesso. Quero aumentar a quantidade dos cílios para jogarmos absolutamente e pedir sempre que me ame te sacie me mergulhe te acalme me deseje te rebele. Quero a contestação em pessoa para criar sempre as realidades que preciso para fugir de mim de nós e de todos.

sobre o erro da história

Começa a noite como um degelo nu e lúdico, quase impuro como a lua cheia coberta de nuvens que se arrastam sutis, como a silhueta de uma sombra do fim de março, confuso outono brasileiro, confusos dias brasileiros, confuso povo brasileiro.
- que sea otro, otro sexo, otra vida, otras personas, que no seas nadie o una minuscula fagulha de todas las cosas que volvense polvo durante esa y otras existencias. Os astros e os signos assinalam a voz de um imperador passado ou de um motociclista que foi atropelado hoje na minha frente e eu segui como se nada tivesse acontecido enquanto mexiam nele e no pescoço dele, como duas identidades que se cruzam inevitavelmente no espaço-tempo da cultura onde o progresso é mera idealização da mente moderna. Enquanto eu mijava no mar e andava de ônibus e falava palavrões por ter topado com o pé no chão e as pessoas faziam coisas inesperadas e eu conheci uma bailarina de um programa de tv antigo e mijava no ônibus e caia no mar e namorava e amava e aguardava o mundo se tornar a merda que se aproxima nós ríamos da dança contemporânea e ríamos do nosso tempo até sermos quase expulsos do teatro, como foi bom, ríamos do constrangimento e do riso e do balé e da falta de música e rítmo e circunstância daquilo, ríamos por sermos felizes e por poder rir de tudo que é realidade de certa forma na insignificância da cidade. < Il a fait des rondes avec de cigarette et il a alumée tout la poèsie que ronde la vie et les mots de une phrase sans sens. Sans sens il a fait de rondes avec de fumée >
Uma nuvem bêbada - boracha - que passa sutil pela noite, distante e analítica, como terapêutica, longe de harmoniosa, distante, bêbada, reprimindo o desenvolver sensual das conversas de roda no fim da madrugada. Seria uma fogueira cintilante como uma prenda dos quatro elementos reunidos num só que sobrevive lento, como uma dança anarquista pairando sobre os cabelos das mulheres incendeia toda lua toda terra toda filosofia conceitual do corpo e dos quatro espíritos, toda fumaça que espairece, toda comida que sobra e tanto falta. Sou um homem que vende água do rio mais perto no trânsito para sustentar minha família, não tenho tempo de sentir culpa. A culpa selvagem de uma coletividade anônima, não indentitária, não hereditária que morreu na história.
O ser-humano poderia ter dado certo, algum dia, mas o seu e o meu caminho se perderam na imensa solidão do infinito.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Comemoração

Eu e um inseto de luz, o mesmo de todas as noites, único disposto a enfrentar o calor insone da lamparina da minha rua, sobre a cidade do silêncio, possui e desperdiça os Kandinskys, Monets e Van Goghs da madrugada, a lua minguando seus mistérios como enigmas, esfinge no deserto da noite, clareando os olhos da minha vontade e do meu corpo, do meu nome e da minha carne, porque a lua minguante tem como beleza a misteriosidade dos seus segredos. Dessa vez quase me decido por falar com o vôo da luz, que talvez tenha coisas interessantes para contar sobre o seu dia, ele que me acompanha invariável nas noites em que olho a cidade do telhado. Hoje vim preparado, como num acampamento, muni-me de toda a técnica, hoje sou o telhado. A cidade iluminada paradoxalmente dorme espessa sobre os desejos leves da rua. E as estrelas brilham numa imobilidade débil, piscando solúveis no lençol escuro que cobre as revoluções dos homens, a música desenhada em todo o século XIX, a inquietação da juventude e as próprias estrelas. Todas as conquistas são válidas com mãos para tremer com a dela, a minha treme até agora. A nuvem devorava a lua antes de desfazer-se. A lua sobrepõe-se agora nua e semioculta, em sua semiótica inabalável. Isso me parece como uma comemoração. O inseto de luz entrecortando seus feixes, nadando o ar, refletindo a luz nos viéses dos olhares de tempo em tempo num padrão incompreensível de farol. O inseto permeando o mundo, existindo insignificantemente ao meu lado e alheio à tudo que o cerca, alheio ao tempo e ao sub-tempo e ao sub-sub-tempo, desnudando o momento, separando a cidade numa sobreposição de imagens e sentidos e significados, como se cada prédio e cada luz fossem desenhadas em planos separados que se sobrepusessem dando-nos a idéia de realidade. Como se eu pudesse parar agora e nesse momento se resumiria diante de mim alguma parte inconcebível da natureza do gênero humano ou da inocência infantil. É melhor salvar o pensamento materializado antes que ele se perca na efemeridade do tempo como demonstra inútil o breve bater de asas do inseto de luz emergido na fumaça da criação e perfurando indefinidamente os horizontes planos do seu entorno, transformando as estrelas a noite os mistérios a pobreza a miséria em insignificantes molduras para o seu existir. O plano silencia profundamente num ante-despertar, do não que é o dormir. Mesmo o vento se cala obscuramente para ser somente o soprar e o soprar que são asas e no comemorar e o comemorar que é a luz da lua. Seria tão mais nítido o não ver do que ver as pequenas partes do nada que nunca se veria e que são as minúsculas fontes para embalar os poucos do tudo numa inesquecível textura de duna ou gosto de beijo ou som do cello na op. 89 de Fauré.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

En el princípio fue tomando actitudes drásticas como no atender a lo teléfono y dejar crecer el pelo para tornarse otro que no él mismo, baseado nas crenças e nos costumbres sociales de que é possível ser quem se queira ou alguém que não exista para preencher as vazias lacunas de pessoas idealizadas nas mentes alheias mas nunca de fato desarolladas num âmbito que quiçá possa ser chamado de concreto.
« as marteladas, sempre martelando esse maldito vizinho! » As marteladas atravessavam a sua parede a sua cabeça as suas idéias. A ansiedade insomne dava voltas-e-voltas-e a noite fazia um calor largo que aumentava a demora do tempo passar.
Já estamos num tempo tão novo, tão inacessível, quase distante do próprio tempo, que se devora vorazmente, invariavelmente...
Os minutos blues « Meet me in the botton when we both are there » desvairados, a angústia da espera, sempre espera, esperando-esperando, enquanto o tempo se devora sem chegar a tocar-nos. E a vida se desenha como um Pollock. E a vida se concretiza aleatória, as idas, os amigos, a arte, o sexo, o álcool todo o álcool que não bebemos, toda a música que nunca escutaremos.
« o bandido que sabia latim, escondemo-nos em baixo de seu bigode em busca da sua poesia... »
Escrever sem nunca ser lido, a opinião indestrutível do caos, a irrucusável maneira de se expressar ante a matéria ontológica da poesia e dos romances. Quem diria que me tornaria metafísico antes dos 40 anos...
E me é possível escrever sem o uso do papel e da caneta, sem o barulho insône das máquinas de escrever, sem que o próprio escrever exista. O café foi, negro e quente,  nada além e sem intenção nenhuma foi o buraco-negro do dia, mergulhado numa xícara branca que já não há, com pequenas rachaduras que desfazem a integridade do seu corpo e se transformam ásperas num esconderijo do tempo, flutua mas pesa cada vez mais conforme se esvazia, e faz-nos meditar sobre todo o significado da arte e do ato, sobrepondo-se à sua efemeridade uma existência ainda mais distante, se refaz em receita básica para o cotidiano insignificante de um inseto ou de um simples ramo de grama. O sujo café brasileiro, detenho-me pensando se não deveríamos criar  movimentos sociais só para melhorar a qualidade do nosso café « oro negro, estraño burgués » But the English will build you bridges and trains and happiness.
Qual o sentido de páginas e páginas paridas sem finalidade? A que devem os homens para suportarem um café tão ruim vivendo no país que o produz? A que vale a arte pendurada sobre minha cabeça forrando o teto as paredes o chão se ninguém é transformado sequer sentem-na sequer olham-na? Como seriam meus personagens se o acaso viesse a dá-los vida?

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

(Toulousse-Lautrec Loïe Fuller in "Dance of the Veils" at the Folies-Bergère)

Sua distância, sua tara, sua casa é a rua ou um cabaré, pincelado fino ou de escuros traços sensuais, a descoberta do tato foi seu maior conforto, sem a máscara do tempo, como um romântico carnavalesco, olhar o mundo através de um binóculo de ópera. O ballet dançante que é Paris, das janelas arredondadas pelos sonhos e pelo suor quente dos quartos, tudo coberto pelo seu antigo casaco de feltro... Qualquer movimento é a sua fonte, desde que para amarrar espartilhos, etc.

Do telhado

o tempo passa tão rápido
que nem parece que entrei
e o tempo não passou que passou que passou...

o meu telhado tem forma de mão
pra quem está vendo as nuvens
ela fecha e acolhe abrigo pro passar do tempo

que a noite é outro dia
pr'um inseto de luz
e eu que estamos acordados
na penumbra chamada fumaça da cidade

as nuvens andam lá em cima
narram histórias d'outra terra
e se disfarçam em cor

a cidade quieta
que fazem dela
um imenso colchão

converso
com o verso
com verso

O que sobra

o que sobra

des
cons
t

i

o verbo

poesia
verso caro
a preço de lágrimas
de tinta
vermelha
como o do quadro
do sorriso triste

não conheço a culpa
que sinto
culpa
que choro
uma tinta entalada
na dor da garganta
como um soluço
seco
de culpa
seca

desculpa-me se a prosa
não me cai bem
mas o verso
me escolhe
como seu amante
sou seu meio de vida
poeta triste poeta
como é necessário
às vezes todas
as vezes é necessário
que seja

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Pero eso es el insomnio Klee « a rubbish bin full of bloody paper » translados de poesia numa língua inteira de vogais a e u, somente. Na totalidade breve de um inseto pleno de vôo ou na consumação totalitária de um terremoto. Ua uanga au uaud du cacaua aungu kubu seria uma possível transcrição fonética... Pero eso es el insomnio insecto o vuelo o el terremoto pleno. Salvo algumas ocasiões se sentia condenado à fatal parcialidade dos fatos, na liberdade da passividade, indo ao encontro cego dos prédios cinzas ou de cores ralas e foscas do centros de todas as cidades, por hotéis que sustentam vagos e quase que escapando-los o luxo de outrora, e habitações precárias para proteger minimamente o que sobrou dos poemas e dos papéis rasgados « like a moonlight chest like a moonlight » Sorvia lentamente a madrugada em busca da unidade de sua vida, em busca de vodca, em busca da unidade entre a sua vida e a vodca, em busca de algo que nem sabia bem o que era. Sorvia a madrugada em busca de sua vida. ¡Pero eso es el insomnio de el vodca, es el insomnio de su vida!

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Três prosas para a insônia.

Suspendo o fôlego para adentrar a eternidade de um instante. Beijo-te. E é como amar-te, porque amo-te e o beijo é como a semântica que dá sentido a tudo que não é amor. E é como desenhar infindos pontilhados rabiscos tintas ao ar ao chão ao teto, paredes de Kandinsky nos rodeiam ou tendem ao infinito, a matéria perde seu significante para se tornar significado autoexplicativo com tons de absoluto.

Lá fora venta e chove e faz frio, comparado ao calor das cobertas, mas é verão. O mundo está realmente mudado, e nem ainda temos idade o suficiente para relembrar com propriedade, ou ao menos estilo, dos "velhos tempos". Apenas precariamente nos afirmamos na história, nem temos pegadas sobre o mundo, estamos em uma ou duas fotografias digitalizadas integradas comercializadas, e já nos enganamos e perdemos sentidos que quiçá um dia tivemos. As cobertas dão sensação de útero, sua língua cordão-umbilical salva-me resolve-me abraça-me, num beijo de raiz das terras, que volve-me ao antes, acalma o necessário nervoso dos amanheceres e dos jornais, cala a lágrima vermelha do pôr-do-sol. E pensar que já me esqueci do antes e não vou me lembrar do depois, caso o depois tenha o porque de ser, ou desista de tudo como a melodia de Schoemberg.
« O mundo está realmente mudado, o mundo está mudo »

O que me assusta é a reação das pessoas, nem de compaixão nem de medo, uma reação reação, somente isto, como isto sem aquilo isto isto mesmo como é e tem de ser porque é assim e será. Acho perigoso pensar sobre isso às vezes e me censuro, calado e escondido na trincheira de uma minúscula xícara de café, bem forte e escuro, como as manhãs e os jornais, e também as pessoas. Outras vezes decido gritar, pulo a xícara, o café, as manhãs e os jornais, mas, às vezes não alcanço as pessoas, que não pulam não ficam nem sequer deitam para dormir um sono tão profundo.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Mãos e vozes

denuncio radical o profundo das coisas
denuncio lírico, o real valor das coisas
denuncio superficialmente a moral das coisas

a volta dolorosa como parto
ou pranto, o que é que somos
quando animais, quando homens
quando temos o poder nas mãos
que pena, que pena

dar algo tão poderoso assim
e enfiar, num gesto impositivo, senão,
na cabeça humana, a inteligência,
que é como desperdício

« gosto da iluminação amarela do meu quarto
gosto dos tons amarelos que quebram o escuro da noite
como as palavras quebram a matéria do silêncio »

enquanto ia embora vi dois policiais armados
parando e revistando e indagando e enfiando e perguntando e calando, como donos,
um menino negro de bicicleta na chuva, como se fosse,
e choquei-me como se não fosse cena comum

enquanto via jornais vi um trator atropelando
casas de papelão de cem famílias sem-terra
porque estavam em território - inutilizado - de uma grande empresa de latifúndio
dessas qualquer que ganham e se vão
as famílias ficam, os feridos ficam

enquanto andava pelo centro da cidade
vi meninos mais novos que meninos
se drogando roubando sobrevivendo dormindo com cobertores de lama pisoteada
enquanto andava pelo centro da cidade como guerra

vi e me calei
vi e não pude fazer nada
calado e preso por mãos e vozes que não se mostram não se vêem e não se escutam
mas se mostram, se vêem e se escutam

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Todos usamos camisa-de-força. Para uma dança flutuante, sutil como um toque de noite ou um balanço de jangada, de uma inevitável beleza, que é algo de triste, um sorriso em pírulas cor-de-ressaca ou o depois. Cercados de nuvens espessas, indo-nos, suspiros e lágrimas, a caixa de fósforos no bolso como chocalho de despedida, é fácil perceber a morte dos ritos, que pesam ancestralmente sob o sapato que abandona como lágrimas as pegadas pelo caminho. Despedimo-nos dos seres humanos e do título sapiens na busca pelo outro lado da lua ou o começo do arco-íris, urgente como o princípio e necessário como a loucura, na escolha de qual chegar primeiro, numa igualdade de preferência, num gosto de febre, ardente como um sol do futuro. ¡La vida es una explosión! La vida es una melodía de Schoenberg, perdida en la calle, acostada con un cualquier hombre en el lío de Miró. Lo seinto revoltada y acomodada con el movimiento de rotación y translación del mundo o sobre la metáfora sobre el condición indispensable del acto. Como se fosse uma idéia de suficiente. Mas cava cava cava o ser humano ainda está. Pobre, podre, pobre, pored, prebo, pedro. Até que impensável surge ali uma flor, e rompe o vínculo com o concreto, como poesia pichada, inchada, mas flor é uma flor, uma flor. C'est toujours quelque chose, mais, minable: c'est mon affaire. No movimento de um êxodo, um fluxo espumoso e corcunda e, ademais resignado ou até adestrado para as todas facilitações e aptidões e papéis e ... da alcatéia humana. Reíamos, como rí el cello. Como lloro.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

A última imagem da noite chuvosa, uma xícara de chá ou um patuá abandonado onde guardo todos os meus segredos, esquecidos, desvividos, um acrílico colorido ou um jade neozelandês. O mundo desacontece num quadro de Kandinsky, como um universo de tons e sobretons de rosa e rosa cor-nenhuma, algo de azul sobre a mesa do jantar e um amarelo velho que chama para a porta um novo cômodo, igual a este e outro igual àquele, e um novo e ainda outro. Sinto-me às vezes cativo para o fato que nos acordam os livros fantásticos, do quão fantástico para eles deve ser a realidade... É engraçado que não escrevo nunca exatamente o que penso, mas sempre algo que desperta com o que tinha pensado em escrever, que é uma recusa de mim mesmo, e por tanto nunca tenho propriedade exata do que penso ou escrevo ou ambos. Tenho medo (e ao mesmo tempo vontade) de jamais pertencer ao que foi escrito. Deixar que a vida própria do texto aconteça por si só, e vamos.

Mirando-nos.

Em quantas línguas ler-te, em quantas línguas falar-te, ou em quantas línguas beijar-te. Em todo o seu absurdo de um momento, sua guirlanda de todo o tempo, olhar de ciranda, todo esse seu absurdo olhar, que é em si um espaço ou um molde para uma estatueta de Rodin. Todo o seu rosto é o além da máscara e o além do sorriso. Olho-te e moldo-te minha estatueta, minha peça perfeita para explicar o tempo, para explicar os sonhos. Para explicar-te em quantas línguas forem, para além das minhas figuras de linguagem e minha semântica que toca-te apenas os calcanhares de bailarina. Os calcanhares feitos de madeira forte trabalhada infinitamente pelo suor da existência. E olhamo-nos em todas as línguas ou em outra língua, mais sonora, mais poética, mais sentido e menos arte, mais corpo e língua de retalhos coloridos, beijo-te, olho-te, confundo-me. Confuso olho-te apenas numa metade da face e desdobro seu rosto em cubismo, recrio máscaras do seu rosto, de todos os mínimos ângulos do seu rosto, recrio-te poliglota e mágica, recebo-te mágica no molde dos meus rostos todos, intensos, mirando-te de poucos centímetros de distância, apenas vislumbrando uma possível forma de existência ao seu lado, em poucos instantes de uma existência maior, poucos milésimos dessa existência maior, miro-te a textura da pele, as cores que absorve e devolve, os milhares de tons que compõem suas bochechas, contorno a linha da sua boca como um desenho, e devolve-me um estático momento de si mesma, na sua boca, o amor que ama o amor, toda ela, toda essa metade da sua boca é um desenfreado rastro ou mesmo um erro da matéria que coincidiu em ser secretamente a perfeição do traço, não por estética, mas por ser o acaso de ter sido desenhada essa mesma linha que forma a sua boca. Linda por guardar tão ínfimo segredo da natureza em um traço de sua boca. Detenho-me o tempo de uma eternidade olhando teu segredo e meu olhar é tragado como água para um rodamoinho estratégico de seu rosto, que arrasta todo para seu olhar e torna insignificante lá fora um homem que saindo do trabalho, corre pela chuva para chegar mais rápido em casa ou as marchas mudas por uma juventude comprometida ou ainda todas as empresas que se ocupam na criação dos desejos humanos. Somos atravessados por fios do seu cabelo que não se contentam com a imobilidade do todo e tornam-se cachos rebeldes e carentes, solitários em confronto com a matéria do seu rosto, resistindo aos inúmeros atentados de prendê-los por trás das orelhas. Não, o desejo do seu cabelo é de vento, o desejo do seu cabelo é levá-la pela vida, solta como um mundo, feita de entrelinhas, sua verdade e sua objeção, sua liberdade e sua dependência, sua metade mulher e outra minha.

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Tiros de tatos cegos

dois tiros na noite uma metralhadora de escuro dois tiros cegos varam a noite tateando por um abrigo e mais um mirando às estrelas transeuntes

tato cego sobre um desejo em braile indecifrável
o fim do sempre atingido por um pouco do nada
como carinho de escultor ao parir seu filho
música de papel sobre as mãos grossas da chuva

estrelas cegas tateando abrigo de uma mira cega no escuro transeunte varando tiros de uma metralhadora de noites

tato indecifrável de um desejo cego em braile
o nada do sempre atingido pelo fim do pouco
como o filho do escultor ao parir carinho
mãos de música sobre a chuva grossa de papel

tiro de estrelas tateando cegos com metralhadoras no escuro varando a noite na mira de um abrigo de dois tiros transeuntes

braile sobre um tato de indecifrável desejo
o pouco do sempre atingido pelo nada do fim
como filho do carinho ao parir o escultor
chuva de grossos sobre papel de música

dois tiros matam o tato com metralhadoras cegas que miram ao abrigo da noite transeunte as estrelas do escuro

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

revolução

A revolução não deu certo
devemos ser o revolutivo das coisas

Entra pela janela

o mundo é tão grande
e eu tão pequeno
e eu tão fraco
e eu

quase como indefeso
defendendo o que não conheço
defendendo o que não me pertence
sou o invasor alheio
sou o escuro do mundo que entra pela janela sem me tocar
por mais que eu queira

Eu quero eu quero!
toca-me leva-me
delicado
não! não sejas tão escuro e noturno e cinza
por que não pode ser somente belo?
quando eu finalmente te acho belo...

Livro da terra II

a tristeza da terra é uma lágrima de chuva
que lava irriga molha salva cresce germina

a dor da terra é de parto
que são os furos que fazem a plantas quando nascem
a dor da terra é de pranto
de sangue de ferro
que oxida o leite do seio da mulher indígena

vem do barulho do metal engajado
soando agudo e áspero como um grito
na enxada que não mais lavra
que ataca o cru da terra
onde canta o galo
anunciando a briga dos homens
na terra que não mais
a terra que foi

o sofrimento da terra é o homem
que a obriga chamar-se terra
de ser palco e apenas
florescer em guerra
tiro e dor
do que não é da terra

porque a terra não é mais terra
a briga não é mais briga
e o homem não é mais homem

foi talvez
esperança
abrigo refúgio
para quem cria na terra
o seio da mulher indígena

domingo, 10 de janeiro de 2010

Livro da terra I

de onde vem a tristeza
é difícil saber

da consciência
de ser
ou de ter
de não poder
talvez
apenas acontecer
de ser assim
as coisas
no país
e no mundo

cava
cava
cava
homem-máquina
que só come pão:
a vida não é pra ter razão

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

O ano começou sendo lavado

Naquele ano o ano começou sendo lavado
A terra decidiu que não precisaria mais do mundo
E o mundo percebeu que o ser humano não deu certo.

Neste enorme latifúndio
onde bem ou mal acorda-se e vive-se
o futuro chega cinza
como um trovão.